quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

"uma parábola do nosso tempo "

"Assim se prova que a vida dos pobres seria bem diferente, se houvesse uma justa repartição da riqueza."

castrim-3 "...Há pessoas que dão esmolas para viverem na ilusão de que os problemas sociais se resolvem com esmolas. Alto aqui! Eu não digo que não se deve dar esmolas, o que quero dizer é que é, hoje, uma incongruência, haver de um lado tantos ricos e do outro tantos pobres. Se houvesse outra e melhor distribuição da riqueza, quer dizer, dos bens acumulados, já não era preciso dar esmolas aos pobres, porque já não haveria... pobres.

Agora vamos a saber: o que eu estou a dizer é uma utopia? Estou a pregar uma revolução impossível? Será viável alguma vez distribuir por todos o muito ou o pouco que exista? Com a palavra certa: sou um lunático?

Ora aqui é que entra a história de Galveias e dos cinco irmãos solteiros, cuja fortuna se concentrou nas mãos de João Adelino Campos Marques. Quase a morrer, pensou o João Adelino:

- Não vou deixar esta fortuna por aí ao deus-dará, nas mãos de algum ganancioso que o que mais certo logo fará é livrar-se dela. Não. O mais acertado é entregá-la a quem saiba estimá-la e dela retirar o melhor proveito.
Vai, deixou tudo... ao povo de Galveias!

De um momento para o outro, uma das freguesias mais pobres do País ficou a mais rica de todas. Só as 50 mil arrobas de cortiça rendem este ano qualquer coisa como um milhão de contos. A junta de freguesia, que, antes, dava trabalho a duas pessoas, emprega hoje mais de noventa. A herança inclui quatro mil hectares de terrenos agrícolas, quatro prédios em Lisboa, milhares de cabeças de gado. Só no ano de 1997 os rendimentos do povo de Galveias atingiram os 560 mil contos. Minha mãe! A vida começou a modificar-se. Para já, um refeitório bem servido, um centro de saúde, um quartel de bombeiros, que terá ao seu dispor os meios mais modernos de combate ao fogo. Aguardam-se novas e substanciais melhorias. Claro que todos os produtos da terra entram no circuito comercial, mas os habitantes da aldeia gozam de grandes descontos.

Ou seja: a riqueza que, antigamente, ia inteirinha para os bolsos de cinco pessoas, pertence hoje a toda a população. Não foi uma esmola: foi um acto lúcido de participação social. Assim, Galveias, uma aldeia tão esquecida do mapa que ninguém sabe (aliás, que ninguém sabia) onde fica, viu-se assim elevada, não à categoria de cidade, mas a muito bem figurar no Novo Testamento. Assim se prova que a vida dos pobres seria bem diferente, se houvesse uma justa repartição da riqueza. Do que eles precisam, não é de esmolas, mas que se satisfaça o seu direito a viver... sem esmolas. Certamente assim o pensava José Adelino, nascido, criado e para sempre lembrado em Galveias."

O excerto apresentado (publicado no livro  "O Lugar do Televisor", Edições Além-Mar, (vol.I-1996; vol. II- 2000; vol. III-2003), foi retirado de uma crónica escrita por  Mário Castrim em 1998.

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